Sunday, September 30, 2007

Toscani está outra vez a ganhar 1-0 ao resto do mundo

Toscani está outra vez a ganhar 1-0 ao resto do mundo

30.09.2007

O fotógrafo voltou a pegar na máquina e a fazer estragos na opinião pública. Disparou, disparou, disparou e afixou nas ruas de Itália imagens do corpo de uma actriz francesa: 30 quilos para 1,65 metros de altura. Lembram-se da foto que mostrava um doente com sida à beira da morte? Agora é a anorexia que está no centro da polémica. Falem de mim, nem que seja para dizer mal, parece pedir o italiano. O mundo fez-lhe a vontade e deixou-o marcar mais um golo. Por Sandra Silva Costa

Podem achar que não, dizer que há limites, que ele foi longe de mais (não é o que se diz sempre dele?), mas a verdade é mesmo esta: Oliviero Toscani está a ganhar 1-0 ao resto do mundo. Ou melhor: está outra vez a ganhar 1-0 ao resto do mundo.
Lembram-se da mulher negra que amamentava um bebé branco? De um painel repleto de pénis e vaginas? Dos momentos finais de um doente com sida? Pois bem, Toscani está de volta: desde segunda-feira passada que mostra nas ruas de Itália, sem rodeios de qualquer espécie, como é que ficam 30 quilos numa mulher com de 1,65 metros de altura.
Praticamente desde a primeira campanha que o fotógrafo italiano fez para a Benetton, em 1982, que o seu nome rima invariavelmente com polémica - não é defeito, é feitio. E agora ele voltou a não deixar os seus créditos por mãos alheias: a actriz francesa Isabelle Caro, de 31 anos, aceitou mostrar à objectiva de Toscani e ao mundo um corpo de 1,65 metros de altura com 30 quilos dentro. É uma campanha publicitária para a marca italiana Nolita (tem um segmento específico de lingerie, o que não deixa de ser irónico, convenhamos) ou um manifesto antianorexia? As duas coisas, como é óbvio, embora, na opinião de Nuno Cardoso, director criativo na agência de publicidade BBDO, a Nolita fique claramente a ganhar: "Poucas pessoas a conheciam e graças a esta campanha passou a ser uma marca global."
A opinião pública (com a italiana à cabeça, naturalmente) não tardou em manifestar-se. Não terá sido por acaso que os cartazes com o corpo nu e desnutrido de Isabelle Caro chegaram às ruas no primeiro dia da semana da moda feminina de Milão - que é, aliás, a única das grandes passerelles mundiais onde já desfila uma marca especializada em tamanhos grandes, a Elena Miró. "Finalmente houve alguém que disse a verdade, que a anorexia não é um problema da moda, mas sim um problema psiquiátrico", reagiu a dupla de estilistas Domenico Dolce e Stefano Gabbana. "As imagens tornam banal um problema sério", disse, por seu lado, o presidente da Associação Italiana de Problemas da Alimentação e do Peso, Riccardo dalle Grave. Goste-se ou não se goste, Toscani, 65 anos, pôs meio mundo a falar da imagem - e, por arrasto, da anorexia. Está a ganhar 1-0, portanto.
"O que se tem discutido sobretudo à volta dessa imagem é se aquele era o melhor caminho para se chegar à mensagem que se queria passar. Para já, pode-se dizer desde logo que o tema está em discussão pública", considera Jorge Coelho, um dos directores criativos na agência de publicidade Ogilvy. É um bocado aquela ideia do senso comum - falem de mim, nem que seja para dizer mal. E há de facto quem diga mal.
"Nunca fui propriamente adepto das campanhas de Oliviero Toscani, porque acho que muitas vezes se aproveitou do facto de estar na berra para vender roupas. Desta vez, Toscani e a Nolita optaram pela versão mais fácil de abordar o assunto. Usam o tema da anorexia de uma forma quase gratuita com um intuito comercial", opina Paulo Gomes, editor de moda da revista Elle e director artístico da Moda Lisboa. "Na minha opinião, esta é uma campanha de mau gosto. Pôs toda a gente a falar dela, e também da anorexia, claro, mas de uma maneira errada", diz ainda.
Citada pela Reuters, Fabiola de Clercq, presidente da Associação Italiana para o Estudo da Anorexia, comentou que a imagem é "demasiado crua" e que pode até fazer com que algumas pessoas sintam inveja do corpo de Isabelle
e tentem ficar mais magras
do que ela.
Situação-limite
Não é esse o principal problema da imagem captada por Toscani, considera Roma Torres, director do serviço de psiquiatria e responsável pela consulta de perturbações do comportamento alimentar do Hospital de S. João, no Porto. "Pode veicular uma ideia errada de que há anorécticos que são já casos perdidos, que já não vale a pena serem tratados", afirma. "Esta imagem tem um impacto mediático muito forte e uma mensagem muito intensa, que estabelece uma relação muito próxima entre o que é a vida e o que é a morte", acrescenta a médica Dulce Bouça. É por isso que choca. E o choque, frisa Nuno Cardoso, é uma forma relativamente segura "de alcançar os objectivos publicitários": "Estas campanhas-choque permitem atingir índices de notoriedade elevadíssimos com pequenos budgets. Uma marca demora muito tempo a implantar-se e assim conseguem-se excelentes resultados em muito pouco tempo."
E não poderá virar-se a caça contra o caçador - a crueza da imagem não poderá fazer com que as pessoas tentem não pensar mais no assunto? "Se exceptuarmos as campanhas confortáveis, as chamadas "campanhas-cliché", com bebés, cãezinhos e outros seres amorosos, nenhuma outra obtém 100 por cento de agrado. Há sempre uma ou outra pessoa que se sentirá ofendida com determinados aspectos. Esta certamente terá mesmo muitas pessoas incomodadas. Mas na minha opinião é uma excelente campanha para a marca e uma eficaz campanha de alerta para a anorexia", responde Nuno Cardoso.
Será mesmo? Maria Adelaide Braga, presidente da Associação dos Familiares e Amigos dos Anorécticos e Bulímicos, não tem dúvidas que sim. "Não achamos que esta campanha seja prejudicial. É bom que as pessoas saibam que podem ficar assim [como a actriz francesa]", defende. "Pena é que o Governo português não faça também campanhas destas", atira, aludindo ao facto de a acção de Toscani contar com o apoio do Ministério da Saúde italiano.
Já Roma Torres e Dulce Bouça desconfiam dos efeitos preventivos da imagem de Isabelle Caro. "Não sou muito adepto de campanhas preventivas, temos é de perceber por que é que os doentes entram nesses caminhos", diz o médico do S. João. "Quando um doente tem já uma anorexia, está de tal maneira em sofrimento que fica pouco sensível a estas imagens. Uma pessoa que esteja a iniciar a doença ou uma pessoa saudável que queira perder algum peso pensa sempre que nunca vai chegar àquele ponto", aponta, por seu turno, a psiquiatra da consulta de doenças do comportamento alimentar do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Dulce Bouça reconhece, no entanto, que a campanha tem pelo menos um lado positivo: chama a atenção para a necessidade "de tratar precocemente a doença para evitar situações-limite" como a de Isabelle Caro.
"Magreza não é beleza"
No meio disto tudo, alguém perguntou a Oliviero Toscani o que pretendeu com a imagem de Isabelle Caro? A AFP. Ele respondeu: "Trabalhando no mundo da moda toma-se consciência do problema que é a anorexia. Este meio empurra as mulheres para regimes para ficarem magras. Olhando para o meu cartaz, as mulheres que sofrem de anorexia devem dizer para si mesmas que têm que parar de emagrecer. Aquela não é uma fotografia-choque, é uma realidade que choca."
A realidade de Isabelle Caro é mesmo chocante. Tem 31 anos, sofre de anorexia desde os 13. Pesava 25 quilos há um ano, 30 quando posou para Toscani e 32 actualmente. Também à AFP contou que aceitou fazer as fotografias para levar a "opinião pública a reagir". "A magreza extrema gera a morte e é tudo menos beleza, é exactamente o contrário", assumiu.
O grupo Flash&Partners, que detém a marca Nolita, disse, num comunicado citado pela Reuters, que o "propósito de usar aquele corpo nu foi mostrar a toda a gente a realidade desta doença, causada em muitos casos pelos estereótipos impostos pelo mundo da moda". É também por este motivo que Jorge Coelho entende que "o posicionamento da marca italiana é muito interessante". "O mundo da moda é muito acusado de promover a anorexia, mas aqui a Nolita gastou dinheiro para dizer que é contra e tornar isso visível."
Se Toscani, como já se disse, rima com polémica, anorexia não rima só com moda, sublinha Dulce Bouça. "A anorexia nervosa é uma doença que resulta de uma procura de uma solução para a vida por uma pessoa com vulnerabilidade biológica que acaba por chegar a uma situação evidente de desnutrição. Quem cai na anorexia começa a perder peso na procura de uma solução para a sua vida. Por isso, acho que querer reduzir a anorexia a uma ideia de moda é apresentar uma visão demasiado simplista."
Armindo Monteiro, presidente da Associação Nacional de Jovens Empresários, que organiza o Portugal Fashion, concorda que a anorexia não é "um problema exclusivo da indústria da moda", embora considere que este universo "às vezes dita de forma quase cruel as regras". "Mas entendo que o mundo da moda não pode ser um mundo de vaidades - a moda é apenas aquela que melhor se adapta ao ser humano. Não têm todos que pesar 55 quilos e ter as medidas exactas", sustenta. E faz ainda questão de lembrar que o Portugal Fashion tem utilizado as passerelles "para chamar a atenção para alguns assuntos". O projecto Moda"R Mentalidades, por exemplo, pôs a desfilar jovens portadores de deficiência.

Texto retirado de Público, edição de 30 de Setembro 2007